a passagem
espectáculo de teatro com habitantes do fundão
A convite da moagem - cidade do engenho e das artes, integrada na programação do festival cale
2025
“Chegou ao fundão um povo desconhecido. Desceram da serra da gardunha e instalaram-se na cidade com a sua língua, as suas tradições, os seus gestos e memórias. Desse encontro nascem perguntas, hábitos, incompreensões e a procura de uma vida comum. Um espetáculo sobre hospitalidade, migração e pertença, lembrando que, em qualquer lugar, estamos todos de passagem.”
direcção artística, encenação e textos MATILDE REAL / movimento, assistência de criação e interpretação SARA PATERNESI / produção executiva TELMA MARQUES / interpretação e participação ADRIELLE SANTOS, CECÍLIA SHIMAHARA, CELSO DIANGONGO, DIOGO GIL, HÉLIA ANTUNES, MARIANA REGO, RAQUEL ESTEVES, RAVEN MARITZZ, ZITA PIRES, ABÍLIO CLEMENTE, ANTÓNIO ALVES FERNANDES, MÁRIO CANINHAS, VERGÍLIO PEREIRA / música ao vivo ANTÓNIO SUPICO / banda sonora FORNALHA de NORBERTO LOBO e PASSO DOIS de CHÃO MAIOR / cenários SARA MEALHA e CLARA QUEIROZ LOPES /vídeo FILIPA GAMBINO / agradecimentos ANA ISABEL MOREIRA, ASSOCIAÇÃO ENTRELAÇOS, JOÃO BARROCA, ZEFF MARITS, ANDRÉ BARATA, RUI PACHECO, LAURA GARCIA, CÁTIA PIRES, RODRIGO ESTEVES MAGALHÃES, FILIPE VELEZ, PROJETO MATRIZ / uma produção MOAGEM, CIDADE DO ENGENHO E DAS ARTES, MUNICÍPIO DO FUNDÃO / a partir de um convite de MIGUEL RAINHA e MIGUEL CARDOSO
(...) ninguém sabe como vieram. O momento exacto em que chegaram. Que razões traziam. Sabe-se que viviam na montanha, e que a montanha deixou de ser lugar para viver. Então desceram com o que tinham, e o seu tempo espalhou-se à cidade. Para eles, descer era uma queda lenta, e ir em frente, uma descida. Caíram aqui como quem pousa com atraso. Tinham aprendido com as folhas. Na montanha também havia guerra, incompreensão, amor, traições, alegria. Tudo como em todo o lado. Mas o lugar tinha a forma da paciência. Eram traições arejadas, ainda que traições. amores daninhos, invejas do avesso. Havia gramáticas de vento, traziam fotografias de antigos silêncios, as suas escolas dentro dos bolsos, pegavam nas ideias com as mãos, vinham de um país que nasceu quase na vertical. E carregavam a memória da neve, que se espalhou à cidade num dia de Verão (...)
(...) nós, que já cá estávamos, que aqui tínhamos nascido e conhecíamos as portas, o granito das paredes, a madeira dos bancos, a cameleira na praça onde subiam crianças, nós, ainda dormíamos. O dia chegou como os outros e havia que fazer tudo de novo: o pão, a padaria, repetir os passos de todas as manhãs (Começam a acordar e a entrar nas rotinas). Íamos acordando alinhados, já preparados, com os deveres do dia no prolongamento dos braços. Cada um na sua cama, a voltar do seu sonho, a vestir o seu propósito. Mas a luz estava diferente. Havia um arrepio que não pertencia a Agosto, um sopro, ou talvez apenas uma vaga nostalgia, uma curiosa esperança de neve, desejo suave demais para ser pronunciado, para todos saberem que todos o tinham sentido. E cada um repetiu a sua manhã, segurou as suas tarefas à frente dos seus olhos, e saiu da sua casa (...)
(...) Tão silenciosamente como chegaram, partiram. Não sabemos para onde. As ruas estavam vazias. Mas tinham entrado novas palavras, pequenos hábitos de outro lado, como se pela sua passagem tivessem largado gestos, e esses gestos ficassem impressos no granito das paredes. A montanha tinha descido. Já não sabíamos distinguir o topo e o sopé. Do chão cresciam ervas, a cidade abria fendas, respondíamos aos sopros lá do alto. E acordámos, alinhados, com as tarefas do dia no prolongamento dos braços. Tudo funcionava como sempre. Mas eles tinham partido. Talvez alguns de nós também tivessem ido. Esperaríamos para ver. Havia uma estranha nostalgia. Tinham deixado a sua passagem. Levaram as suas histórias, as suas roupas velhas e gestos compridos, mas o chão tinha subido. E este lugar, que era nosso, era também deles, ou nós de lá, ou eles daqui, ou tudo isso ao mesmo tempo. A montanha estava cá em baixo. E havia que fazer tudo de novo: o pão, a padaria, repetir os gestos de todas as manhãs. (...)
fotografias de Jab Fotógrafo