vaga
espectáculo de teatro, música e dança com pescadores e habitantes da azenha do mar
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aqui, tudo é outra coisa. Na povoação da azenha do mar há barcos com nomes de homens, homens com nomes de rochas, rochas que falam às crianças. Para começar é preciso esquecer tudo, como uma onda que entra pela aldeia e transforma os lugares, os corpos e os objectos. Os habitantes da azenha juntam-se a um grupo de intérpretes da música, teatro e dança para contar esta nova história.
direcção artística e texto MATILDE REAL / direcção musical RÉMI GALLET / co-criação e interpretação INÊS MELO (dança) , SARA PATERNESI (dança) , FILIPA MATTA (teatro), JOÃO PEREIRA (música) , BRUNO VÍTOR (música) / participação e co-criação ANDRÉ NOBRE, ANTÓNIO ESCALEIRA, CARINA GUERREIRO, ANTÓNIO CHARILA, EDGAR PATRÍCIO (TROVOADA), EUGÉNIA, FERNANDO POPE, GUSTAVO, HENRIQUE, ISAQUE JOÃO, JOANA, JOÃO PEDRO, JOAQUIM, LARA, LEONOR, MÁRCIO, MARIA DE JESUS, MARIA DE JESUS, MARIA TERESA, MARILEI, MÁRIO, MARTIM, PAULA, SHREESHA, TI JOÃO, VALDEMAR, VALENTIM, VÍTOR, VÍTOR HUGO, ZÉ PEDRO / produção executiva JOANA QUEIROZ / apoio logístico e humano NÉLIA PENTEADO / desenho de luz DAVID PEREIRA / assistência técnica SÉRGIO WALGOOD, TIAGO ALVES / direcção de cena ROBERTA MARTINS / vídeo MARTA OLIVEIRA / fotografia VASCO NEVES / cartaz JOSÉ TORRES / produção TERRA BATIDA / apoios MUNICÍPIO DE ODEMIRA, DIREÇÃO-GERAL DAS ARTES / parcerias ASSOCIAÇÃO DE PESCADORES E MORADORES DA AZENHA DO MAR, ASSOCIAÇÃO CULTURAL DO BREJÃO, CULTIVAMOS CULTURA, ANTENA 2
(...) estão preparados para voltar? Onde uma pedra volta a ser pedra e um barco a barco regressa. Até à próxima vaga. É aqui onde vivemos. Antes era outra coisa. Depois a primeira barraca, a primeira casa, o primeiro caminho, a primeira estrada. E todo esse chão coberto de algas. Nós somos esta história. O mundo e o tempo vão experimentando e a cada momento vamos, voltamos. É como as marés. Esquecemos, lembramos. Um dia isto não terá acontecido. Trovoada será apenas uma trovoada, e a Maria uma mulher, e tamboril um peixe. E as pedras serão pedras. Mas talvez guardem lá dentro a memória de que Trovoada foi um homem, e a Maria um barco, e Tamboril uma rua. E assim vamos, voltamos, e nada acaba realmente (...)
as pedras falam às crianças
como as galinhas guardam ovos e a cabeça pensamentos, vocês também nos guardam por um tempo. Existimos aí dentro. Somos claras para os que escutam. Nós não estamos cá, só nascemos quandos nos viram do avesso. Dêem-nos atenção delicada. E beijos. O que não sabem de nós é o que importa. Somos depositárias dos vossos sonhos. Pedra foi a palavra que nos deram, mas o nosso nome é outra coisa, mais fácil e perigosa. Somos distantes demais para os vossos sentidos, estamos à beira do infinito, à beira da cor, do som, do frio. Temos mensagens para peixes e libélulas. Guardamos a vossa infância, que ficará aqui dentro, no mais compacto silêncio. E, como todas as infâncias, andaremos a rolar pelos fundos e a cair de grandes alturas, enquanto vocês se esquecem e juntam ao resto das coisas. É mesmo assim. É certo que assim seja. Devagarinho, deixarão de nos ouvir.
Tá no tempo dos caracóis. O Gaspar vive na casca dum caracol. A Alice vive dentro de uma boneca. A Maria Duarte vive numa agulha. O meu tio Trovoada vive em casa mas também no contrário da casa. Tudo aqui tem um preço, percebes? As ruas começam a ficar inclinadas e mesmo assim vês sempre o mar ao longe. Navego as ruas de skate, à noite, e juro que é tão fácil e tão perigoso como o alto-mar. Os cães gritam ajuda, ajuda. Os cães todos. Não consigo olhar para cães pequenos. O mundo é demasiado grande pra eles. Eu observo. Vejo tudo o que se passa. Dentro da mala trago o que ninguém sabe. A minha mala é um buraco negro e tem lá dentro um sabre de luz. A minha mala é mesmo infinita. Cabe a Azenha cá dentro. Basta eu querer e engulo toda a gente. Não acreditam? Aqui há coisas que não são mesmo de acreditar.
Sou marinheira de estrada e esta é a minha balada.
As acácias estão assombradas por mim. Este é o meu spot. Aqui tenho todo o tipo de pensamentos. Aquilo que eu quero dizer e não posso dizer. Mas é verdade que vejo tudo. Os cães desta aldeia são os nossos antepassados. E cada casa é da forma dos pulmões de cada um. E as galinhas são a bófia aqui da zona, ninguém pode dar um passo a mais.
Sou uma marinheira de estrada e quero um tsunami.
Aqui nada pode ser dito. Putos a gritar por todo o lado. Putos a gritar as novas leis da física. A Azenha tá toda em promoção! O Valdemar tenta vender búzios aos turistas ingleses. Põe um búzio no ouvido e diz: “Ouve-se a Inglaterra!” Mas o que se ouve mesmo é outra coisa. Eu oiço tudo. Há muita tristeza aqui. Muitos milagres. Abre a boca e fecha os olhos, vou pôr um barco lá dentro. Este sítio não se devia chamar Azenha. Devia chamar-se peixe, ou mar. Aqui faz um frio de morte. E um calor de morte. Mas de morte é bom.
Sou marinheira de estrada e esta é a minha balada.
Eu vejo tudo o que se passa. As pessoas parecem pessoas, parecem normais. Mas o que vemos de dentro é um miúdo engolido por um peixe a enrolar um cigarro, virado ao contrário, com o lábio queimado. A gritar. É preciso abrir a mente. Não te feches à vida. Aqui é cada um na sua conchinha de quatro paredes. Não é fácil abrir a mente. Quando abres vês a merda do mundo, mas também ouves estrelas, e animais que te amam, e aprendes o beat dos pássaros. E de vez em quando há abraços. É como a música. A música diz muito. Eu aprecio todos os meus defeitos. Sou uma skater de nascença. Marinheira de estrada. Navego as ondas da rua. Gosto de como sou e não sou normal neste mundo. Sou como sou e às vezes troco as palavras. Outras vezes elas trocam-me a mim. E desabafo com o mar. Sou daqui e não sou. Será que isto faz sentido? Eu não sou quem vocês pensam. Foda-se. Agora falo com as estrelas. Ou será que é da minha cabeça? Aqui não se faz nada. Literalmente não se faz NADA. Se calhar estava a alucinar de tanto chorar. E quando olhei outra vez a estrela tinha desaparecido. Olá vizinhos, olá! O mar é o meu pai. O mar é bom. Quando o mar entra em nós, nunca mais sai. A gente aprende desde pequenos a dar mortais. Às vezes morremos, outras vezes vemos o mundo ao contrário, como ele é na realidade. Aqui também tá tudo ao contrário. Há bué barcos em terra. Há bué estrelas que só se vêem daqui. Há terrenos todos vazios, são o fim dos tempos. Antes do início.
Sou marinheira de estrada e esta é a minha balada.
A minha mãe dizia para eu olhar para as estrelas. Eu olho para o mar e é o meu pai. E penso. A Azenha toda é um spot pra pensar. Aquelas cenas acontecem e tu não sabes o que é real. E não dizes a ninguém. Os pensamentos fazem barulho. Por exemplo: O mar nas rochas, a carrinha do pão, as portas a abrir e a fechar – são tudo pensamentos. A Azenha é como o mar. Quando entra em vocês, nunca mais sai. Isto é uma ruína. As pessoas criam ruínas. Depois nasce qualquer coisa. É preciso esqueceres tudo. Esqueceres quem és, como é que te chamas. Este é o meu spot pra esquecer. E depois sou livre pra ser um cão, ou um pássaro, ou um percebe, ou uma gaja bem comportada (não, isso não). Mas aqui tão sempre a nascer coisas. E depois morrem e nascem outras. Aqui isso acontece mais do que nos outros lugares. É porque este lugar não é um lugar. É um estado de espírito. Tão a ver? Aqui as ruas não são ruas, são neurónios (e alguns deles tão bem queimados). Sabem qual é o momento exacto em que nasce uma onda? Quando o pessoal se junta. É sempre uma cena grande. Uma cena forte.
Sou marinheira de estrada e esta é a minha balada.
VALDEMAR: Atenção a todos, que eu tenho uma coisa importante para dizer. Atenção! Silêncio agora, por favor. Tenho uma coisa pa dizer. Alguém sabe o que é que é um barco?
LEONOR: Um barco não é um barco não é um barco. Aqui, tudo é outra coisa. Hão-de reparar, à medida que o Sol vai esquecendo e a noite vai caindo, que nada é o que parece.
FILIPA: Aqui, o mar é que manda. E a lógica é outra. As correntes misturam tudo. Corpos-linguado, corpos-concha, corpos-barco, corpos molhados, leves, pesados, corpos de pé no chão.
CHARILA: Este chão devia ser nosso!
FILIPA: Mão-mexilhão, pedra-pescoço. A água vai entrando. A escuridão vem chegando, e agora quem somos, em quem nos tornamos? À tona tudo é sensato.
ANDRÉ: Aqui, tudo é fácil e tudo é perigoso.
FILIPA: E aqui, tudo é possível. Vai a vaga crescendo no espaço. Mudando os nomes das coisas. A água cai pela falésia e arrasta os barcos, os nomes, os trabalhos. Muitos objectos perdidos e já nada faz sentido. O Cartaxinho usa um relógio onde vive um carapau. A Mariana tem uma borboleta de focinho achatado. As colheres do Escaleira caminham por todo o lado. As pedras falam com o Gustavo. E os búzios do Valdemar até ladram. Este é o sentido da vaga. Para que as pedras sejam gatos, e os gatos uma orelha, e a orelha um quadrado, temos de esquecer que um barco é apenas um barco. Um barco não é um barco. Trovoada não é trovoada. Trovoada é aquele homem que ali está. E o Varela? Varela não é homem. É barco. O barco do Trovoada.
E a Glória, o Vitor Hugo, o Avô Carlos? São barcos. Os barcos chamam-se homens, os homens chamam-se rochas. E há uma rocha chamada Barco. Encalhou lá um barco e o nome passou para a rocha. E essa rocha, o Barco, fica ao pé da Amália. Amália é uma praia. Era mulher, agora é praia. A Eugénia conheceu a Amália. Amália mulher. Agora passeia nela. Amália praia. A Eugénia que é irmã da Maria Teresa, dona da Boga. Que uma é cadela com nome de peixe. Maria Teresa irmã do Escaleira. Que é um homem com nome de rocha, que faz esculturas de madeira. Para ele, um nó na madeira é uma velha. E como diz Escaleira:
ESCALEIRA: Algumas colheres têm velhas lá dentro. Quando encontro uma fico todo chateado.
FILIPA: Escaleira, a rocha. E a Maria? Não... A Maria é mesmo a Maria... a Maria de Jesus, a outra Maria de Jesus, a Maria, a Maria Duarte. Ah, e a Maria, que é um barco. O barco do César.
VALDEMAR: Vou perguntar outra vez. Alguém sabe o que é um barco?
FILIPA: E o Sol?
ESCALEIRA: O Sol é o João.
LARA: João?
ESCALEIRA: Sim. Desde criança que oiço que o Sol é o João. É ou não é Vitor?
VITOR: É.
LARA: Nunca ouvi falar disso.
ESCALEIRA: Olha azar!
FILIPA: E o mar? Aqui fala-se com ele. E ele ouve a gente. Paula, hoje vamos pescar?
PAULA: Se ele deixar...
FILIPA: E nos dias bons ele responde, com vagar.
ESCALEIRA: Há dias bons e há dias maus. E ainda há dias santos. Entre os mortos e os vivos, algum há-de escapar.
PAULA: Não me molhes! Chega-te pra lá!
FILIPA: É assim que a Paula fala com o Mar.
PAULA: Calma, calma bicho! Estás aí estás a levar! Não comeces!
FILIPA: Começamos? Ou será que já começou? Qual é o momento exacto em que a onda começa?
VALDEMAR: Vou perguntar outra vez. Alguém sabe o que é um barco?
LEONOR: Esqueçam tudo o que sabem, só assim poderão começar. Um barco não é um barco, um braço não é um braço. Uma pedra não é uma pedra. Uma pedra não é uma pedra não é uma pedra. Venham!