o varela
despedida de barco e espectáculo de teatro, música e dança com pescadores e habitantes da azenha do mar
2025
O varela é um barco. O barco do edgar, também conhecido como trovoada. Chegou ao fim da sua via (começou a meter água por todos os lados e já ninguém dava conta dele). Tem de ser abatido, mas precisa de uma despedida. Uma despedida digna. Artistas da dança, música e teatro mergulham mais uma vez na azenha do mar para, em conjunto com os seus habitantes, se despedirem do varela. Uma despedida e uma festa em forma de espectáculo.
colectivo artísitco INÊS MELO SOUSA, MATILDE REAL, RÉMI GALLET, SARA PATERNESI / produção executiva CAROLINA RIBEIRO / textos MATILDE REAL / coreografia INÊS MELO SOUSA E SARA PATERNESI /música RÉMI GALLET/ participação e co-criação ANDRÉ NOBRE, ANTÓNIO ESCALEIRA, ANTÓNIO GREGÓRIO, ANTÓNIO CHARILA, CARINA GUERREIRO, EDGAR PATRÍCIO (TROVOADA), EUGÉNIA, FERNANDO POPE, GASPAR, HENRIQUE, JOÃO PEDRO, JOAQUIM, MÁRCIO, MARIANA, MARIA TERESA MARTIM, PAULA, VALDEMAR, ZÉ MANEL / desenho de luz DAVID PEREIRA / vídeo HENRIQUE REAL / fotografia VASCO NEVES / cartaz JOSÉ TORRES / uma produção TERRA BATIDA / apoios MUNICÍPIO DE ODEMIRA / parcerias ASSOCIAÇÃO DE PESCADORES E MORADORES DA AZENHA DO MAR, ASSOCIAÇÃO CULTURAL DO BREJÃO, CULTIVAMOS CULTURA, ANTENA 2, RESTAURANTE AZENHA DO MAR, SUL INFORMAÇÃO/ agradecimentos NÉLIA PENTEADO, ANDRÉ BARATA, CARLA, OTÁVIO, IVO
“Então? Estão preparados para voltar? Chegou a próxima VAGA. Quando nos virem passar, não somos nós: é um lugar. Eu sei que isto não faz sentido. Mas este é o sentido da VAGA: não separamos o corpo do caminho. E quando a Azenha entra em vocês, nunca mais sai. Aqui entendemos os cães, as ondas, os búzios. Aqui tudo tem voz: uma pedra, um rapaz, um barco, um sapato, os objectos que vêem por aí perdidos. Todos fazem sentido. Tudo carrega notícias. Nós somos esta história. Vamos, voltamos. Corpos-linguado, corpos-concha, corpos-barco, corpos molhados, leves, pesados, corpos de pé no chão.
Mão-mexilhão. Pedra-pescoço. Estamos na Rua do Tamboril, frente à casa do Fernando Poppe. Começamos? Ou será que já começou? Qual é o momento exacto em que a onda começa?
Para quem está de fora, nada faz sentido. Mas este é o sentido da vaga. Esqueçam tudo o que sabem. Só assim poderão começar. E para esquecer é preciso entrar: no mar, nos estranhos que vêem passar, na história, na casa, no quarto, em vocês mesmos, em nós: neste lugar. É preciso entrar. Entrem. Com vagar.”
EUGÉNIA: (abre a persiana) oh mana!
MARIA TERESA: (abre a persiana) olá mana!
EUGÉNIA: Já sabes? Diz que o Varela está em terra.
MARIA TERESA: Ai é? O Varela?
EUGÉNIA: O Varela!
MATILDE: O Varela?
MARIA TERESA: O Varela!
EUGÉNIA: O Varela!
MATILDE: Andava no mar há quanto tempo?
EUGÉNIA: Diz que era há quase 3 anos...
MATILDE: 3 anos?
MARIA TERESA: 3 anos?
EUGÉNIA: mais ano menos ano.
MARIA TERESA: deve estar cansado...
MATILDE: Pois deve.
EUGÉNIA: Pois deve.
MARIA TERESA: Deve estar diferente.
MATILDE: Mais velho.
EUGÉNIA: Acabado!
MATILDE: Mas tens a certeza?
EUGÉNIA: Quem me disse foi o Tóino.
MATILDE: Sim, mas o Tóino também diz que o Sol se chama João.
MARIA TERESA: e porque não?
EUGÉNIA: Quem disse ao Tóino foi o Valdemar.
MATILDE: Mas o Valdemar diz aos turistas que os búzios ladram em inglês.
MARIA TERESA: São turistas. Haviam de ladrar em português?
EUGÉNIA: Mas quem disse ao Valdemar foi a Shakira.
MATILDE: Shakira? A cantora?
EUGÉNIA: A cadela da Maria Alice.
MATILDE: A cadela falou com o Valdemar?
MARIA TERESA: Ladrou.
EUGÉNIA: Mas quem disse à Shakira foi a Boga.
MATILDE: A vossa cadela?
MARIA TERESA: Pois.
MATILDE: A vossa cadela Boga disse à Shakira, a cadela da Maria Alice, que disse ao Valdemar, que disse ao Tóino, que vos disse... que o Varela está em terra?
EUGÉNIA: Isso.
MATILDE: Isso não faz sentido nenhum.
MARIA TERESA: porquê?
MATILDE: Porque que é que a Boga, que é a vossa cadela, não falou convosco directamente?
MARIA TERESA: Ladrou.
EUGÉNIA: Há perguntas sem resposta. Por exemplo: porque é que andamos a falar à janela se estamos todas na mesma casa? (MARIA TERESA já está a trocar de janela para o lado da EUGÈNIA)
MARIA TERESA: E nós as duas na mesma sala.
MATILDE: Realmente. Mas então o Varela está mesmo em terra?
MARIA TERESA E EUGÉNIA: Isso!
MATILDE: e o que acontece agora?
MARIA TERESA e EUGÉNIA: Vamos jantar.
MATILDE: Vamos.
(Fecham as persianas)
Este ano, pela primeira vez em muito tempo, os barcos ficaram três meses em terra. Não havia trabalho. Ninguém sabia o que fazer. O mar não estava capaz. E em terra amontoaram-se os barcos, os homens e as nassas. Juntaram-se a todos os objetos espalhados: cadeiras, portas e pescadores. Deambulavam pela estrada, sem jeito nem fim. Nada servia para nada. Pernas e braços desocupados.
Para que serve uma cadeira sem pernas, uma porta sem casa, um barco sem mar, um pescador sem trabalho?
Este é o sentido da vaga. Parecemos inúteis e inaptos. Mas vagas sabem que o sentido não começa nem acaba no trabalho. Nem na função. Nem nas palavras. Cadeira, criança ou cão. Porta, pescador ou peixe. Aqui tudo tem voz. E nós somos as coisas deste lugar. Não separamos o corpo do caminho, e todos temos futuro: homem, maré e barco.
O Varela era um pescador, um pescador de ideias perigosas que estava no topo da falésia, com pensamentos de pássaro. Mas lá mesmo no topo encontrou um barco desacabado. Tinha passado a data de ser navegado, não cabia lá nem a ponta de anzol porque o barco não era barco, era jardim. Estava mais perto de quintal de inseto do que de escritório de pescador. O chão tinha pisado o barco, e o pescador de ideias perigosas pensou que aquilo não servia para nada, porque na sua longa experiência tinha aprendido a distinguir os úteis dos inúteis, os aptos dos inaptos.
Aquele barco era carcassa, era o que era. Era um barco sem casa, com o nome apagado, servia de sepultura a cascas de caracol e cocó de gaivota. Barco, cocó e casca, tudo da mesma laia. Tinha sido branco e depois castanho, esventrado, cresciam flores entre os buracos. Era jardim de inseto há mais tempo do que o tempo que tinha exercido a sua profissão de barco. Abandonado, ali sem jeito nem fim.
Tal como o pescador de ideias perigosas, que não tinha sonhos nem ideia de futuro. Aquele homem era inútil, como uma cadeira de três pernas, um pneu furado, a fotografia de um ex-namorado, um pedaço de madeira queimada. Ao pescador ninguém o queria, e ele pensava em abandonar-se como o barco. Nasce pescador e reencarna peixe, que debaixo do mar a solidão deve ser diferente.
Mas ao pescador deu um mal-estar de repente. Olhando o barco ali sozinho, na ponta do precipício, percebeu que a solidão era mais do homem que do barco. Porque o barco até parecia bem acompanhado, pelo chão e pelo sol, pelas gaivotas e pelos ratos. Tinha um futuro à sua frente que era outra coisa em vez de barco. Estava tão mudado que o pescador nem sabia se alguma vez teria navegado, apesar da forma e do casco, das bordas e do soalho. Era outra coisa, muito outra: um quintal de inseto, um coração caído, fortaleza de gaivota, uma boca aberta, um trono de rato, a mesa posta ao contrário, um monumento involuntário, uma cara de avó, um ovo partido, um fantasma de madeira, um estômago de vento, uma língua seca, um bolso do chão, uma festa enterrada.
Qualquer coisa nova, novíssima em folha. Então o pescador de ideias perigosas, em vez de se abandonar à falésia, teve uma ideia ainda mais arriscada: trocou de nome com o barco. Pintou o casco, mudou o registo e a identidade. Mudou de nome ali mesmo. O pescador deixou de ser Varela e desenterrou a festa que o barco, o Varela, com muito cuidado, lá dentro guardava.
Ora sejam muito bem vindos. Que este espectáculo seja bom. E que faça sentido para vocês. E que estejam confortáveis. Bem vindos à despedida do VARELA. O meu nome é Valdemar Patrício, mais conhecido por TROVÃO. O meu pai é o Edgar Patrício, mais conhecido por TROVOADA. A minha mãe é a Carina Guerreiro, mais conhecida A CHUVA. Tenho um irmão chamado José Guerreiro Patrício, mais conhecido por FAÍSCA. E tenho uma irmã, a Clara, mais conhecida por RAIO. Essa já tem a vida dela. E este aqui é o VARELA. Que na vida já deu o que tinha a dar. VARELA, mais conhecido por: O BARCO DO TROVOADA. O Varela veio para terra ao fim de 3 anos de trabalho. Começou a meter água e ninguém dava conta disso. Agora está parado. E chegou ao fim da sua vida. Precisa de ser abatido. Que este espectáculo seja a sua despedia. A sua despedida digna.